“O capitalismo também depende do trabalho doméstico”: a luta feminista em cartazes por See Red Women’s Workshop

Laís Fonseca
6 min readMar 28, 2022

Ainda é necessário tensionar os limites de quais narrativas visuais estão sendo contadas e localizadas enquanto demarcadores históricos comuns especialmente quando desejamos nos debruçar sobre produções de luta de determinados recortes sociais. A história não é unilateral ou linear, tampouco seu registro, ou seja, crescemos educadas e moldadas à partir de perspectivas de mundo que visam atender algo ou alguém e, na maioria dos casos, sob o olhar hegemônico.

Isso não seria diferente com as lutas que envolvem recortes de classe, raça e gênero, e, no caso deste artigo, em especial à luta feminista. Normalmente suprimidas ou silenciadas na história após constantes processos de apagamento da memória, as produções gráficas acerca do assunto normalmente exigem uma dinâmica que mobiliza muito mais esforços de pesquisadoras e interessadas no assunto a fim de reconstituir essas narrativas e possibilitar que de alguma forma, tenham seu acesso ampliado.

Reunião do coletivo de mulheres “See Red” — 1974 à 1990

Assim, muitas vezes nos deparamos com a pergunta “Onde estão as mulheres do design?”, mas aqui, proponho um leque de perguntas mais amplo: quem foram essas mulheres? Onde estão esses acervos? Quem foram os responsáveis pelo apagamento? Qual situação específica mobilizou a interrupção das produções?

Dito isto, ao propor a intersecção entre luta feminista, design e produções gráficas, venho falar de See Red Women’s Workshop.

Imagem do livro “See Red Women’s Workshop”, publicado em 2017 pela editora Four Corners Books

O See Red Women’s Workshop foi criado em 1974, em Londres, encabeçado por três ex-estudantes de arte que se conheceram através de um anúncio publicado na Red Rag — revista feminista radical da época — , que propunha encontrar mulheres “interessadas em formar um grupo para olhar e combater as imagens negativas das mulheres na publicidade e na mídia”, unidas sob o propósito de combater pautas como o sexismo, a violência doméstica e a desigualdade sexual no Reino Unido e no mundo.

Assim, um coletivo de mulheres com ideias muito similares se uniu para compartilhar habilidades de design, gravura, impressão e serigrafia, encontrando o senso de comunidade em uma cultura que não valorizava suas contribuições, mas exigia sua marginalização por meio de trabalho doméstico não remunerado, bem como salários injustos e abaixo do piso fora de casa. Dessa forma, os cartazes produzidos ao longo de dezesseis anos pretendiam quebrar o atual “senso comum” da época acerca da figura da mulher e suas atribuições, ou seja, ao produzir em massa suas mensagens claras e diretas, o objetivo era tornar essas ideias “radicais” a norma social.

A cooperativa se propôs a subverter, desafiar e explorar imagens estereotipadas de mulheres, questionar o papel das mulheres na sociedade, desafiar o mundo da arte masculina de um ângulo coletivo e empoderar as mulheres através da criação de um coletivo de mulheres.

Imagem do livro “See Red Women’s Workshop”, publicado em 2017 pela editora Four Corners Books

O coletivo trabalhou em conjunto a partir de uma série de ocupações em locais como Camden Road, South Lambert Road e Camberwell para produzir pôsteres ousados ​​e poderosos em serigrafia que questionavam o papel das mulheres em um mundo opressivo que procurava prendê-las na domesticidade. Desse modo, pautas como as causas da libertação das mulheres, liberdade reprodutiva, educação sexual, igualdade racial, direitos dos homossexuais e ajuda aos refugiados foram defendidas por meio de diversos materiais gráficos, desde cartazes à folhetos, calendários e adesivos.

Cerca de 45 mulheres passaram pelo See Red durante os anos de funcionamento. A qualquer momento, um grupo central de cinco mulheres dirigia o workshop em tempo parcial e sem remuneração e a maioria tinha trabalho remunerado em meio período além dos compromissos de cuidar dos filhos. Juntas, eles produziram cartazes, ilustrações, cartões postais e calendários.

Imagem do livro “See Red Women’s Workshop”, publicado em 2017 pela editora Four Corners Books

Em relação à concepção e autoria dos materiais, para todo o trabalho uma ideia seria discutida, um membro trabalharia em um design, trazia de volta para comentar, outra pessoa poderia fazer alterações e assim por diante até que o coletivo ficasse satisfeito com o resultado final, assim, nenhum indivíduo em si tomou o crédito pelas produções, a qualidade era importante e muitas horas seriam gastas para garantir que apenas pôsteres bem impressos e produzidos saíssem da oficina.

Sobre o método e matéria prima para impressão, apenas tintas à base de óleo estavam disponíveis naquela época. A principal técnica de impressão foi a serigrafia; as gravuras eram inicialmente penduradas em varais para secar, depois avançavam-se para secadores e só depois de cerca de dois anos foi possível construir uma câmara escura e comprar o equipamento para que stencils fotográficos pudessem ser introduzidos.

Participantes do See Red trabalhando no estúdio Iliffe Yard em 1982. © See Red Women’s Workshop.

O financiamento e a compra dos equipamentos de segunda mão, tintas e demais materiais vieram da venda de pôsteres, calendários, do fornecimento de serviços de impressão para mulheres e grupos comunitários além das doações da própria comunidade até que, posteriormente, no início da década de 1980, contaram com o apoio da Southwark Council e do GLC. Ao longo dos anos, See Red também atraiu atenção de forma negativa da Frente Nacional, que quebrou janelas e portas da oficina em Camden Town, fizeram telefonemas ameaçadores, roubaram, derramaram tinta em máquinas, urinaram em documentos e cortaram linhas telefônicas.

“Vemos esses ataques contra nós como parte de uma tendência crescente da extrema direita que agora vê as organizações de mulheres como uma ameaça suficiente para querer nos intimidar e nos atacar”. — See Red Women’s Workshop para artigo da revista Outwrite

Para além do cerne feminista, See Red também se preocupava com outras pautas, como a interseccionalidade. Assim, à medida que cresceram, passaram a trabalhar com outros grupos de mulheres para representar uma série de questões políticas e globais das mulheres. Embora não fosse chamado assim na época, buscaram abordar conscientemente questões de raça, sexualidade e classe dentro do coletivo, buscando ativamente novos membros e trabalhando com outros grupos para produzir cartazes que levantassem e refletissem questões de mulheres negras, lésbicas e mulheres da classe trabalhadora, reconhecendo que o verdadeiro feminismo tem que ser mais do que apenas a representação do feminismo branco homogêneo.

“O capitalismo também depende do trabalho doméstico”, cartaz produzido pelo See Red Women’s Workshop

Depois de 1984, o coletivo concentrou-se mais na concepção e impressão de cartazes para mulheres e grupos comunitários e, embora muitos dos cartazes originais para o movimento de mulheres continuassem a ser reimpressos e distribuídos, nenhum novo projeto de cartaz do See Red de fato foi produzido. Por fim, a oficina fechou em 1990, a indústria de impressão mudou e a serigrafia se tornou um método de impressão muito caro. Os cartazes não estavam mais gerando renda suficiente para manter o projeto e a procura se tornou cada vez menor.

Duas das fundadoras faleceram, Julia Franco em 1980 e Sarah Jones em 2007. Outras fundadoras sobreviventes, Suzy Mackie e Pru Stevenson, além das participantes posteriores Jess Baines e Anne Robinson, estiveram envolvidos nos últimos anos em muitas atividades sobre a história e narrativa da See Red, incluindo a montagem do site oficial, várias palestras, exposições e o livro sobre o workshop publicado pela editora Four Corners.

Imagem do livro “See Red Women’s Workshop”, publicado em 2017 pela editora Four Corners Books

Referências

Texto “We’ve Still Got Work to Do”, Commarts.

Portal Oficial “See Red Women’s Workshop”.

Texto “Nevertheless, They Persisted: How a London Women’s Collective Turned Anger Into Art”, por Hunter Oatman-Stanford, 2019.

Mostra “See Red Women’s Workshop”, por FORMS, VOICES, NETWORKS: FEMINISM & THE MEDIA.

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